Jorge Ben Jor e os caminhos herméticos

Julia Klautau Guimarães
5 min readDec 27, 2021

--

Por Julia Klautau Guimarães e João Pedro Normando

Sim, eram os anos 70, e em meio a uma ditadura política e artística ainda sobrava espaço para o misticismo respirar através da música. Raul Seixas parecia ser a grande representação da magia moderna, que resgatava antigos conceitos pagãos, inserida na música e embaralhada entre asserções filosóficas. Em “Gita”, um destes maiores exemplos, Raul e Paulo Coelho resgatam o texto sagrado do hinduísmo Bhagavad Gita, numa síntese musical lançada em 1974. Nesse mesmo ano, as raízes do samba também se dispersam entre galhos prontos a abraçar o abismo filosófico do qual músicos encaram e pescam as referências que mais os chamam atenção. Esse sambista atento era Jorge Ben Jor, na época apenas Jorge Ben. Certamente começou a ouvir a melodia crescente que o eco do abismo produzira quando também o assoprara em voz mansa, “Errareee….”

Vide Raul, Black Sabbath, até mesmo os hippies perdidos nas ilusões sintéticas como Jefferson Airplane, Stones e sua oratória sobre os feitos de um Deus desvirtuado assassino de Anastasia Romanov, a era de Aquário no musical Hair… já não se buscava mais a tradição cristã e, na verdade, começou-se a redescobrir as similaridades nas filosofias religiosas mais antigas. Essa mistura de referências ora antigas, ora modernas, se reflete nos axiomas descritos no Caibalion, livro lançado em 1908 com a alcunha d’Os Três Iniciados, um copilado dos princípios herméticos que foi decisivo para trazer à tona a este século as reformuladas religiões e espiritualidades do mundo antigo. Não só a reformulação, como o interesse que renasce na juventude exploradora imersa em perceber o que faz afinal sentido hoje, nos confins das modernidades.

E essa juventude artística já realiza, sem perceber, uma das passagens do livro em que se refere à lei reativa: “Toda Causa tem seu Efeito; todo Efeito tem sua Causa”. Não existem entidades intocadas e abandonadas pela Lei, uma vez que “todas as coisas acontecem de acordo com a Lei; o Acaso é simplesmente um nome dado a uma Lei não reconhecida; existem muitos planos de causalidade, mas nada escapa à Lei”. De forma que a revolução espiritual moderna entre os séculos XIX e XX não seria reconhecida enquanto revolução se não fosse ela efeito dos séculos de repressão a ideais pagãos.

Lançado em 1974, o álbum “A Tábua de Esmeralda” trouxe para o prisma místico da MPB as declarações de Ben sobre o trabalho de Hermes Trigesmisto, filósofo egípcio que contribuiu com sua(s) ciência(s) com o desenvolver da filosofia hermética, assim como bebeu na fonte de outras figuras históricas. Entre os beijos do samba carioca e do rock, Ben carrega principalmente sua própria interpretação da antiga ciência da alquimia, voltando-se com mais afinco para as linhas filosóficas e teológicas relacionadas à mística dos alquimistas. Para quem imprime sua base de conhecimento na plataforma musical, Jorge realiza adequadamente o valor estimado no Caibalion: “A posse do Conhecimento sem ser acompanhada de uma manifestação ou expressão em ação é como o amontoamento de metais preciosos, uma coisa vã e tola. O Conhecimento é, como a riqueza, destinado ao uso. A Lei do Uso é universal, e aquele que viola esta lei sofre por causa do seu conflito comas forças naturais”.

Ao mesmo tempo em que se aproxima de temas como amor ou saudade, recorrentes na MPB, a “Tábua de esmeralda” faz questão de se distanciar disso, ou de ao menos os tratar de uma forma mais transmutada. O disco de Ben Jor abraça abertamente os potes de vidro dos alquimistas, como na faixa de abertura “Os Alquimistas estão Chegando”, um aviso aos desinformados; eles estão no meio de nós e se comportam de maneira peculiar. Mas ele também não deixa de transfigurar os sambas em ritos esotéricos sem abandonar seus causos cotidianos, como o “Minha Teimosia é uma Arma pra te Conquistar”, “Menina Mulher da Pele Preta” e “Cinco Minutos”.
De volta às referências… a figura do alquimista Nicolas Flamel aparece duas vezes no trabalho de Ben Jor; primeiramente representado na capa do disco, e depois tendo sua história revelada na canção “O Namorado da Viúva”.

Engana-se de quem acha que “O Homem da Gravata Florida” trata de algum amuleto mágico contemporâneo vindo dos engravatados de Wall Street, que topariam tudo pelo bem de seus negócios — inclusive usar uma gravata florida mágica. O personagem da canção é Paracelso, alquimista. A faixa lida com a concepção sobre amuletos mágicos e como a percepção humana é facilmente alterada com detalhes que sobram ou faltam. “Errare Humanum Est” também não é uma frase motivacional em latim. É a impressão Jorge benjeana de Eram os Deuses Astronautas?, pergunta que dá título ao livro de Erik Von Daniken sobre a origem da Terra.

“Eu Vou Torcer” é o manifesto de Jorge Bem em nome de sua alquimia musical. Ele lista ali todas as suas questões e as misturas como num caldeirão mágico: ele torce pela paz, alegria, amor, pelo Flamengo e por São Tomás de Aquino. Já em “Zumbi”, o cantor cai de paraquedas num navio negreiro, e conta para os presentes que Zumbi está próximo, assim avisando que apesar das diferenças entre o lado onde há cafezais e do outro canas-de-açúcar, quando o Senhor das Guerras chegar tudo se subordinará a ele. “Hermes Trismegisto e sua Celeste Tábua de Esmeralda” celebra o pico da ousadia alquímica de Jorge. A letra não é de sua autoria, e não se sabe ao certo quem a escreveu, já que se constrói sob fragmentos do texto de A Tábua de Esmeralda na íntegra, porém sambado e coroado. Hermes, o três vezes grande, figura misteriosa que não deixou rastros e por isso é tratado como os deuses Hermes da Grécia e Thoth do Egito, deixou na Terra um texto metafísico/teológico que Jorge Ben recebeu com sua malícia e acabou por devidamente manifestá-lo em música. Outra canção teológica é “Brother”, um chamado do artista pra Jesus Cristo e Deus, um aviso como quem diz: estou aqui como o três vezes grande, com Cristo, Hermes e Zumbi.

Referências bibliográficas:

O Caibalion (1908) — Os Três Iniciados
A Tábua de Esmeralda (2020) — Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
A tábua de Esmeralda (1974) — Jorge Ben Jor

--

--

Julia Klautau Guimarães

From Belém do Pará, Brazil. Now living in Lisbon, Portugal. An enthusiast of little stories. Insta: @tamborim_cuica_ganza_berimbau